Manuela, quando tinha treze anos e lhe cresceram as mamas, se lhe arredondaram as ancas e começou a sangrar “lá em baixo” uma vez por mês, assustou-se. (…) Tudo aquilo lhe tinha sido já apresentado como misterioso, esquisito – coisas que simultaneamente caracterizavam as mulheres como específicas face aos homens, normais, e que ao mesmo tornavam as mulheres objecto de excessiva atenção. Já intuía que iria ser sobredefinida por essas características – objecto de espanto e escrutínio, o corpo feminino era também objecto de desejo e predação. Aliás, já o era, desde que nascera: sobredefinida como do sexo feminino, antes mesmo de ser Manuela ou outra coisa qualquer. Prestava muita atenção aos seus irmãos e primos machos e achava que eles não tinham preocupações, e que ninguém se preocupava muito com eles. (…) quando faziam asneiras até lhes achavam piada, diziam asneiras sem serem reprimidos, (…) e ainda tinham liberdade para falar das raparigas como se fossem uma espécie de manada disponível para a sua caça.
Um dia sem exemplo, os pais deixaram-na sozinha em casa, mas com a incumbência de ir ao supermercado fazer umas compras. Dirigiu-se ao roupeiro do quarto dos irmãos. Por cima das calças que trazia vestidas, vestiu uma grande camisola e, por cima desta, colocou um blusão. Mas se viam as mamas. Como tinha o cabelo um pouco comprido, enrolou-o e colocou um gorro por cima. (…) Calçou uns ténis. Planeou engrossar um pouco a voz. Controlou a ondulação das ancas, enfiou as mãos nos bolsos. Saiu à rua e foi ao supermercado. Pela primeira vez em semanas, nenhum operário do prédio em construção à frente da sua casa lhe dirigiu um piropo.
Anos depois, Manuela ri-se a contar esta história. Terminou um curso universitário e tem um emprego decente. (…) Ela não quer falar de um conjunto de coisas que a deprimem: de como no emprego não consegue subir na hierarquia porque tem que conciliá-lo com a vida doméstica; de como não percebe porque tem que conciliá-lo mais com a vida doméstica do que P.(…) Não é dessas coisas que ela quer falar. Quer falar, isso sim, de como continua a achar o seu corpo uma coisa estranha. (…) O que quer dizer é que passou a vida a ouvir dizerem-lhe que o seu corpo é algo de “estranho”. O seu corpo
mesmo e o seu corpo como representação. Teve sempre a sensação de que, quer fosse a mãe, quer fosse os livros que lia, quer os médicos onde ia, quer ainda as revistas femininas, a publicidade, etc., o seu corpo precisava de infinitos cuidados, especialistas, explicações, especulações: da menstruação ao útero, (…) do champô aos pensos higiénicos, da forma de cruzar as pernas à roupa, das horas de saída aos sítios da cidades, tudo, mas tudo parecia dizer ao mesmo tempo que ela era frágil e hiper-desejada – portanto, uma presa, como nos documentários da vida animal.
Tudo parecia dizer que ela era, antes de tudo o mais e mais que tudo -
corpo. ao mesmo tempo tudo parecia dizer que ela era menos: menos inteligente, menos forte, menos capaz de. Estúpida, portanto inferior. Emotiva, portanto inferior. (…) Também lhe diziam, de uma forma ou outra, que era perigosa, tentadora, que tinha poderes ocultos, que era a perdição de toda a gente e mais alguma. (…) E sempre a precisar de ser explicada – por quem? Pelos homens, claro (…).
Aos poucos foi pensando sobre o assunto. Não demorou muito a perceber que até há pouco tempo havia profissões que lhes estavam vedadas. Que não teria podido votar ou ter propriedade. Que anos atrás o marido teria uma autoridade total sobre ela. E isto tudo porquê? (…) talvez por outros indícios da superfície do seu corpo, mais localizados e escondidos: (…) Na sua vagina (…) a metáfora do seu “mistério”. Para lá dela (…) o útero (…) onde podem crescer bebés – os bebés que lhe disseram ser seu destino natural desejar e ter; os bebés que até há bem pouco tempo eram do homem que fertilizasse os ovos no seu interior.
Miguel Vale de Almeida
“O Manifesto do Corpo”
In Revista Manifesto, n.º 5
imagem: Marina Abramovic