Absolutamente outro
Entrevista ao psicoterapeuta brasileiro Flávio Gikovate, na Sábado (n.º225).
(...) No seu último livro afirma que o amor romântico tem os dias contados. Porquê?
Porque o mundo mudou. O amor romântico - ciumento, opressivo e sufocante - já não tem hipóteses porque é incompatível com o desejo crescente do individualismo. Aos poucos, as pessoas estão a reconhecer que o amor tradicional é imaturo e desgastante. No mundo moderno, em que há muitas actividades interessantes e individuais, o amor como remédio não funciona. Este amor vai sendo substituído por outra qualidade de relação.
Quando é que chegou a essa conclusão?
Trabalho com essa hipótese há muitos anos, mas só agora consegui colocá-la num livro de maneira completa. Muitos casamentos entre opostos, com a ideia de fusão, ainda vão acontecer antes que as pessoas se dêem conta que já não dá para insistir nesse tipo de relacionamento. Antes, o amor ganhava à individualidade porque não havia o que fazer com a individualidade. (...) a individualidade é tão preciosa que ninguém quer (e não deve) abrir mão dela para viver com alguém.
Diz aos seus pacientes que, entre o amor e a individualidade, devem optar pela segunda?
Sim. (...) A mulher tornou-se independente económica e sexualmente e põs fim à estabilidade conjugal. Quanto mais o indivíduo for competente para viver sozinho, mais preparado está para uma boa relação afectiva.
Então os solteiros são mais felizes?
São mais felizes que os mal casados. Antigamente havia um enorme preconceito em relação às pessoas solteiras, sobretudo as mulheres, as "encalhadas". Hoje, sem esses preconceitos, o mundo é mais favorável aos solteiros. (...) As boas relações afectivas são parecidas com o ficar sozinho, ninguém exige nada de ninguém e ambos crescem.
Como define "mal casados"?
É uma relação entre opostos, um egoísta e um generoso. Essa relação é a que mais acontece porque está no imaginário das pessoas há séculos. No entanto, é muito perigoso depender de "terceiros" para ser feliz. Quando um dos dois se apercebe que não encontrará no outro aquilo que procura, a separação é inevitável, porque no amor dito romântico responsabilizamos o outro pelo nosso bem-estar (...).
Então, com o fim do amor romântico, as pessoas vão passar a fazer sexo de ocasião?
Não necessariamente. (...) O meu livro tem dois finais: um é ficar sozinho; outro, bem acompanhado. (...) Mas a união tem de acontecer entre pessoas semelhantes, com os mesmos planos e projectos, e não entre opostos.
As pessoas casadas são na sua maioria infelizes?
Os divórcios comprovam que o número de pessoas felizes no casamento é cada vez menor. A noção de amor actual revela um sentimento que temos pela pessoa cuja presença provoca em nós a sensação de paz e aconchego que perdemos ao nascer. Desde o nascimento, temos a impressão de ser uma "metade" (...). E assim vamos repetindo a fórmula do início da vida e persistindo no erro. Temos de entender que não somos metade. (...) insitem na ideia do amor romântico, que une duas metades incompletas, o que é um erro.
(...)
Uma pessoa sozinha não tem inevitavelmente momentos em que sofre?
Depende de como entenda a solidão. Se for como no amor romântico, com a sensação de desamparo, sofre. Mas se tiver maturidade emocional haverá um momento em que terá a necessidade do aconchego físico. É preciso conhecer-se a si mesmo e ser capaz de viver sozinho. Depois, procurar alguém com afinidade principalmente de carácter intelectual. Amor significa aconchego físico, amizade é afinidade intelectual. (...) Mas individualismo não é egoísmo. O outro deve ser escolhido por afinidade intelectual, como os amigos. Lealdade, cumplicidade, respeito pelo outro são características de um relacionamento maduro, com qualidade.
Há uma fórmula para ter um casamento feliz?
Não há fórmula, mas um caminho. A união tem de acontecer entre pessoas semelhantes, com os mesmo planos e projectos, e não entre opostos. É o que eu chamo amor. É uma relação mais parecida com a amizade. é a aproximação de duas pessoas inteiras e não de duas metades. Esse é o melhor passo para aprimorar uma relação.
(...)
Há quem diga que são banalidades. Mas por mais comum que seja, é-o sempre menos que outras banalidades: precisamente as do amor romântico. Essas preenchem prateleiras das livrarias, salas de cinema, músicas e histórias para adormecer. É, por isso, sempre bom ler sobre modelos alternativos que ora não sabemos que existem, ora tudo à volta faz questão de dizer que não devem existir. Depois de rever a Ally McBeal - no seu incurável romantismo - sabe bem voltar à realidade.
Imagem: "Snow White swallows the poison", Paula Rego
5 comentários:
... desde que haja chavascal!
Mas, fora de brincadeira, não consigo deixar de me sorrir quando se fala em "fim do amor romântico". Como se ele alguma vez (na plena acepção da palavra) tivesse começado...
tenho que dar razão a esse terapeuta e curiosamente, tb eu no meu blog faço referância a esse artigo...:) (lsbianornot.worpress.com)
Bruce, no imaginário o amor romântico começou efectivamente; e há muito. Mas parece também ter começado a acabar. E com isso, sim, é que não posso deixar de me sorrir!
Bea, faltam umas letrinhas no teu endereço, mas cusca que se preze descobre tudo. Vou lá espreitar ;)
Excelente artigo. Também faço parte do clube dos amores sóbrios. Normalmente acredito em três coisas: empatia, honestidade e sexo. Penso que se o "amor" existe ele será um misto de tudo isso. Além de que normalmente vem atrelado com coisas más: apego físico e emocional e medo de ficar sozinho. A este propósito, indicaram-me há uns tempos um post muito interessante sobre a química na durabilidade dos relacionamentos "amorosos". Vale a pena dar um lucky look na azinhaga da cidade: http://azinhagadacidade.blogs.sapo.pt/83200.html
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