sexta-feira, agosto 15

A voz cada vez menos secreta

0. Não é nova uma crítica ao feminismo hegemónico (da mulher branca, heterossexual e de classe média) pelo seu olhar colonizador de subjectividades outras. Hoje é mais que sabido que os feminismos ditos ocidentais, não raras vezes, mais não fizeram que colar as suas reivindicações a países do sul. Ao ignorar as especificidades de cada cultura, sociedade, política, etc., muitas reivindicações acabavam por ser um duplo silenciamento das mulheres de tais países do sul, cuja voz nem sempre se considerou importante ouvir - pois estas mulheres eram (tempo verbal seguido de ponto de interrogação) tidas como exclusivamente vítimas, passivas na vontade, ignorantes da sua condição e impotentes quanto à alteração das suas condições de vida. Este silenciamento passa – e não me parece assim tão raro – pela uniformização do outro, ou das outras. E não é preciso falar de oriente para se ver essa uniformização: quantas vezes não ouvimos dizer “a mulher”? Como se as mulheres fossem uma massa invariável. Se fazemos isso com a vizinha da casa ao lado, também o fazemos com a vizinha do país menos ao lado. E o problema, para mim, é que com esse olhar se silenciam diversidades múltiplas, ricas e com potencial emancipatório. Esta lenga-lenga toda para dizer que este post não pretende ser uma denúncia das condições de vida (ou de não vida) destas mulheres do sul – é certo que a denúncia é parte fundamental dos feminismos, mas cansa-me que seja exclusiva.

(Série "Fervor, Shirin Neshat)

1. O que trago é A voz secreta das mulheres afegãs*: a poesia inseparável do canto (landays), de língua pashtun em que a presença das mulheres é activa e de onde emerge “um rosto orgulhoso, impiedoso e revoltado”; onde vemos não a submissão tantas vezes nomeada, mas uma mulher que “se indigna, contesta, alimenta a sua revolta”. Pelo canto – pela poesia – as mulheres pashtun praticam um desafio de natureza semelhante a outra forma de revelar a sua revolta - o suicídio – impondo “um acto socialmente irrecuperável” e “fatal”. As suas melodias frequentemente “pontuam as discussões à maneira de uma citação, de um ditado que expõem um sentimento ou uma ideia” e exaltam três temas: a honra, a morte, o amor. “Num meio social onde o que diz respeito à paixão e à sexualidade passa por ser estritamente tabu” as mulheres pashtun não receiam “abordar esses temas sem rodeios, com uma brutal sinceridade”, glorificando o seu corpo, o amor carnal e o fruto proibido. “Que uma mulher grite tão alto o seu amor, é socialmente um escândalo”.
Escandalizemo-nos, então.

Em segredo ardo, em segredo choro
Sou a mulher pashtun que não pode revelar o seu amor
-
Poisa a tua boca na minha
Mas deixa a minha língua livre para te falar de amor
-
Ontem à noite estive com o meu amante: uma noite de amor que não se repetirá
Como um guizo, com todas as minhas jóias, tini em seus braços até ao fundo da noite
-
Apanha lenha, acende uma grande fogueira!
É meu costume entregar-me em plena luz
-
De boa vontade te daria a minha boca
Mas porquê sacudir o cântaro? Já estou toda molhada
-
Primeiro, toma-me em teus braços, aperta-me
Só depois poderás ligar-te às minhas coxas de veludo
-
Que Deus te proíba todo o prazer em viagem
Já que me deixaste adormecida, insatisfeita
-
O meu amante quer ter a minha língua na sua boca
Não pelo prazer, mas para afirmar os seus direitos sobre mim
-
Irmãs, atai os vossos véus à cintura
Pegai em armas e ide para o campo de batalha
-
À meia-noite a lembrança de ti é a única visita
Que me atormenta e não me deixa dormir
-
O meu amante é hindu e eu maometana
Em nome do amor, varro os degraus do templo interdito
-
Se dormes, só terás poeira
Eu pertenço aos que, por mim, não dormem a noite inteira
-
O meu amor prefere as flores sensatas dos jardins
Mas eu, tulipa selvagem, desfolho-me na planície sem fim
-
Olhai do esposo a horrível tirania:
Bate-me e proíbe-me de chorar

*Majrouh, Sayd Bahodine (2005) A voz secreta das mulheres afegãs. O suicídio e o canto. Lisboa: Cavalo de Ferro (tradução portuguesa de Ana Hatherly).

3 comentários:

Nuno Santos Carneiro disse...

Com uma paixão resultante de trabalho maravilhoso com mulher que comigo caminhou no desvendar de possíveis olhares psicológicos à obra, não há como não reforçar a pertinência da mesma. Não é nada egocêntrico, só o recordar de uma jornada maravilhosa, repito, feita com A. M. nesse desvendar. Outros olhares (como o deste post) me serão, por isso, sempre caros a respeito de tal pérola discursiva.
Kisses.

cuscavel disse...

E eu com essa (também) pérola à mão e ainda sem lhe ter pegado...
Não passa deste mês! :)
BeIjos

x-pressiongirl disse...

Tão secreta que essa mesma voz foi gritada por um homem. O poema é belíssimo.