terça-feira, maio 22

Segundo sexo na primeira pessoa

- Excertos de entrevista de John Gerassi a Simone de Beauvoir (1976)
Gerassi. Disse que a sua própria consciência feminista desenvolveu-se durante a experiência de escrita de “O Segundo Sexo”. De que forma vê o desenvolvimento do movimento depois da publicação deste livro do ponto de vista da sua própria trajectória?

Beauvoir. Ao escrever “O Segundo Sexo” percebi, pela primeira vez, que eu própria estava a levar uma vida falsa, ou melhor, que estava a lucrar desta sociedade centrada no homem sem me dar conta disso.

O que aconteceu é que desde cedo aceitei os valores masculinos, e vivia de acordo com eles. Claro que eu tinha bastante sucesso, e isso reforçou a crença de que homens e mulheres poderiam ser iguais se a mulher quisesse tal equidade. Por outras palavras, eu era uma intelectual. Tivera a sorte de provir de um dado sector da sociedade, a burguesia, que não só pôde financiar as melhores escolas mas também permitir que me ocupasse calmamente de ideias. Devido a isso, consegui entrar no mundo dos homens sem muita dificuldade.Mostrei que podia debater filosofia, arte, literatura, etc., ao “nível dos homens”. Reservei o que era particular à condição da mulher para mim mesma. Fui incentivada a continuar pelo meu sucesso. À medida que o ia fazendo, vi que poderia ganhar a vida tão bem quanto um intelectual do sexo masculino e que era levada tão a sério como qualquer um dos meus pares. (…)

Cada passo reforçou a minha ideia de independência e igualdade. Assim sendo, tornou-se muito fácil esquecer que uma secretária jamais usufruiria dos mesmos privilégios. (…)

De facto, eu pensava, sem nunca admitir, que “se eu posso, também elas podem”. Ao pesquisar e escrever “O Segundo Sexo” apercebi-me que os meus privilégios resultavam do facto de ter abdicado, pelo menos em alguns aspectos cruciais, da minha condição feminina. Se colocarmos isto em termos de classe, percebê-lo-á facilmente: tinha-me tornado uma colaboracionista de classe. Bom, era uma espécie de equivalente nos termos da luta entre géneros.

Através de “O Segundo Sexo” tomei consciência da necessidade da luta. Percebi que a grande maioria das mulheres simplesmente não tivera as oportunidades que eu tivera, que as mulheres são, de facto, definidas como um Segundo sexo pela sociedade centrada nos homens, cuja estrutura implodiria caso essa orientação fosse genuinamente destruída. E que, tal como os povos económica e politicamente dominados em qualquer parte do mundo, é muito difícil e lento o desenvolvimento de uma rebelião. Primeiro esses povos teriam que tornar-se conscientes dessa dominação. Depois teriam que crer na sua própria força para transformá-la. Aquelas que lucram com a sua “colaboração” têm que perceber a natureza da sua traição. E, finalmente, aquelas que têm mais a perder por tomarem partido, ou seja, mulheres que, como eu, ascenderam a uma carreira e posição de sucesso, têm de ter vontade de arriscar a insegurança para ganharem respeito próprio. E terão que perceber que, de entre as suas irmãs, as que são mais exploradas serão as últimas a juntarem-se-lhe.

(...) À medida que se desenvolve a tecnologia – sendo esta o poder do cérebro e não do músculo – o raciocínio de que a mulher é o sexo fraco e que, por isso, deve ter um papel secundário já não pode ser racionalmente mantido. Uma vez que as inovações tecnológicas estavam tão largamente difundidas na América, as americanas não poderiam escapar às contradições.

(...)Tendo percebido que o capitalismo conduz necessariamente à dominação dos povos pobres de todo o mundo, massas de mulheres começaram a juntar-se à luta de classes – mesmo que não aceitassem o termo “luta de classes”. Tornaram-se activistas. Juntaram-se às marchas, manifestações, campanhas, grupos clandestinos e à esquerda militante. Lutaram, tanto quanto qualquer homem, por um futuro sem exploração nem alienação. Mas o que aconteceu? Nos grupos ou organizações a que se juntaram, descobriram que eram tanto o segundo sexo como o eram na sociedade que queriam suplantar. (…)


As mulheres tornaram-se as dactilógrafas, as fazedoras de café desses grupos pseudo-revolucionários. Bem, não deveria dizer pseudo. Muitos destes grupos eram genuinamente revolucionários. Mas treinados, desenvolvidos, moldados numa sociedade orientada para o homem, e esses revolucionários trouxeram essa orientação para o seio do próprio movimento.

Como é natural, esses homens não abandonariam voluntariamente essa orientação, tal como a classe burguesa não abandonará voluntariamente o seu poder. Assim sendo, tal como pertence aos pobres destruir o poder dos ricos, também pertence às mulheres destruir o poder dos homens. E isso não significa dominar os homens em alternativa. Significa estabelecer a igualdade.

Tal como o socialismo, o verdadeiro socialismo, estabelece a igualdade económica entre todos os povos, o movimento feminista aprendeu que terá de estabelecer a igualdade de género através da conquista desse poder à classe dominante dentro do movimento, ou seja, aos homens. Por outras palavras: uma vez dentro da luta de classes, as mulheres perceberam que essa luta não eliminaria a luta entre sexos. (...)

(Tradução de Andreia Cunha)

Imagem: Beauvoir por
Henri Cartier-Bresson

5 comentários:

DomingonoMundo disse...

Uns quantos jornalistas apelidaram a doce Simone de “la sartreuse de charme”, não deixando de a associar ao Homem com que sempre partilhou a sua vida. Sem chegar a tal extremo, eu diria que ter Sartre por companhia terá sido, talvez, uma vantagem substancial. Veja-se a carta que Simone, cega pelo furor da paixão, escreveu ao escritor Nelson Algren: “Eu vou ser boazinha, lavarei a louça, varrerei, irei eu própria comprar ovos e bolo de rum, e não te hei-de tocar nos cabelos, na cara ou nos ombros sem a tua autorização”. Por vezes, como diz uma certa tradição (patriarcal), o amor cega o pensamento!

Anónimo disse...

Domingo-no-mundo: Que desilusão!
O meu caro Domingo resolve ceder a uma tentação partidária onde não há partido nenhum, para entre Sartre e Simone se decidir por Sartre; e nesse sentido, serve-se da citada carta… Sem querer interferir num conflito que é só seu, parece-me que a sua questão tem muito pouco de sartreano. Pois não foi o filósofo, meu caro Domingo, que disse que a biografia é “um esforço insidioso”? Que diria ele se pudesse ver que o meu amigo brande uma carta pessoal contra toda uma construção filosófica? Quanto a mim, que atento mais à doutrina do que à vidinha de quem a constrói, penso apenas, meu caro Domingo, que Beauvoir é uma espécie de segunda-feira do feminismo. Tudo o resto, caríssimo Domingo, são para mim questiúnculas de fim-de-semana!

DomingonoMundo disse...

Quem disse o contrário, querida Safo? A menina é que, susceptível e sibilina, resolve interpretar a minha pequena cusquice como se se tratasse de uma escolha de camisolas. Mas não é. Digo até que as reservas da menina Safo não assentam no meu comentário, mas em pequenas discussões que marcaram saborosamente a nossa biografia conjunta – quem se deixa, então, levar pela biografia? Eu ou a menina? Como está farta de saber, eu reconheço em Simone uma leitura – original, criativa e privilegiada – de Sartre, aliás à imagem de grande parte do pensamento produzido na época, o que não quer dizer que reduza a escrita do Castor à influência do companheiro. E isto é diferente de inventar “questões partidárias” ou de retirar consequências abusivas de uma carta (que, apesar de tudo, não inventei!). E sim, também acho que se não deve cair em amplas dissertações biográficas a partir de cartas, minutas de banco ou soutiens, por mais chamuscados que estejam. Ou seja, concordo plenamente com a menina… Satisfeita?

Anónimo disse...

Tudo bem, apesar de dispensar a sua velha tendência para o paternalismo quanto à minha pessoa… Amigos, como dantes!;)

cuscavel disse...

Deixem-se estar à vontade. Já aí vem o chazinho e as torradas. ;)